Morando no abismo ou vagueando tão rente aos dedos o universo visual da pintura de Carlos dos Reis aconchega-nos o olhar com a húmida matéria dos rios e dos oceanos e deixa-nos no rosto um pouco da chuva milenar dos nossos sonhos, medos e devaneios.
Intensíssima esta matéria que se imprime robustecendo nos nossos lábios as palavras mais frágeis da nossa inocência. Deixam, estas telas, que murmuremos nomes indizíveis ou esquecidos. Em absoluto, resguardamos no silêncio o encantamento sereno das sombras com que sempre afagamos a água que brota das fontes ou as pedras mais polidas das arribas que ao mar se encostam deixando que a espuma das ondas as pintem com o arco-íris do tempo.
São telas como nuvens ou farrapos íntimos que contam histórias ou compõem e enredam trechos musicais que desvelam partituras ou mesmo melodias assobiadas em lugares que apascentam o sagrado e nos acolhem com o mistério da luz polindo a nossa ignorância ou espelhando mesmo a viscosa simulação do nosso prazer.
São telas como espelhos que nos colocam no escuro dos nossos passos. Que nos enredam os instantes mais soberanos do nosso tão desprevenido olhar – são o verniz seco que se nos grava ao corpo estalando subtil com um piscar de olhos, por uma palavra revestida de lume, ou um sentimento que escapa para a luz, desesperadamente, e enorme como uma lágrima ou mesmo até como uma gargalhada adormecida e insepulta.
Os bichos e os animais de Carlos dos Reis deixam-se amar. Atentam os mistérios com os seus indizíveis mistérios. Ondulam presos ao chão em suas tintas desmedidas. Inteiros e ásperos, desfeitos e suaves. São fluidas sombras murmurantes que adormecem suavíssimas. Indagam ao tempo uma casa ou uma sombra branca. Uma gruta no centro primitivo da guerra e dos ventos. E da melancolia.
Por eles, Carlos dos Reis, aproxima-se do fulgor dos palácios e decifra o imenso frágil dos herbários. Declina o peso das estrelas ou o fulgor das conchas. Inflama de aromas os campos e a nossa pele. Empolga, translucidamente, a afazia frondosa das árvores. A sua mão capta a água dos ribeiros para saciar a sede da nossa curiosidade e nudez.
Que bichos e animais são esses que, belamente, na sua completude mercurial cumprem no escuro do nosso olhar a catástrofe da domesticação. Quem naquela errância vegetal e insone abandona o lugar de deus. A sua queimadura ou tule de lucidez e morte. Quem rebelde e sombrio expande as rédeas extensas da ternura. E secreto percorre discreto o negrume crepitante da luz impossível de encenar. Para onde vão esses bichos e animais insonoros, metafísicos e oceânicos, cegos como as mais profundas algas. Quem no labirinto irisado dos seus olhares se despeja ou na quietude da sua placidez naufraga.
Desmesurados brotam como âncoras ou febre. Embebem-se no relevo de um rosto ou na forma implacável e solene de uma pedra. Vagueiam com a sua mortalha de tinta e brisa nocturna entre marés e os sulcos das palavras ou a combustão de um verso incendiando a carne. Neles, as palavras são conchas intermináveis. São os nossos lábios sussurrando a maciez emaranhada de uma onda ou o anelado imaculado de uma palavra breve que doce ruge. São monstruosos cintiladores balouçando desprendidos ao sol. Ascendem à nossa memória ávidos de alegria como membranas de luz que espalham fundamente como células ou facas afiadas o seu berçário de mistérios e aparições.
Estas telas são de uma lentidão rutilante, apuram e encharcam o pensamento. Ameaçam o abrupto do sopro divino, fazem supurar o magma das lunações como se levitando bichos e animais se incrustassem como relâmpagos estáticos no vazio dos céus. São uma gramática de vísceras e pele que multiplica e vinga a desarrumada rasura da morte. Um jardim pontilhado a grafite com o esplendor minucioso da matéria e do veneno fulminante do caos e da loucura.
São animais que transpiram cravando gota a gota os ossos e os músculos na poeira frágil dos caminhos. Na sua alvura luzente deflagram e ferventes invadem o tumulto assustador e rubro do nosso sangue. Povoam com as mais brancas palavras o que degolam implacáveis e bruscamente ferozes e explosivos espalham-se como o álcool ou uma canção que carboniza.
Pastor de um redil que da infância regressa como uma infusão ou queda funda na sua mão dorme e flui a terra toda, o pulsar de um coração vegetal onde os bichos e animais se apascentam. Onde a fragilidade é como a carícia de um lençol de nervuras, uma flor de palatos decifrando o vento que paira e sinuoso rasga e embebe os limites da tanta luz que buscamos devagar e cegos para escapar da catástrofe, para redimirmos do crime e dos dias uma oração que gravita indiscernível, escaparmos do abismo das sombras, do sal ou moeda que alguém um dia colocará nos nossos olhos ou da cal nos nossos pés.
Carlos dos Reis diviniza um tempo imemorial que à terra faz regressar e ao lugar mais exíguo do nosso olhar para decifração das mãos com que nos dá a ver e a desenhar, também nós, enredados de segredos os secretos e elementares caminhos da morada e da vertigem dessa sua oficiante luz. Jorge Velhote